Sunday, July 30, 2006

Fragmentos.

Fragmentos de eternidade.
(Ricardo Gondim)

Depois de penar bastante com os conceitos de tempo e eternidade, Jorge Luis Borges concluiu: “A vida é pobre demais para não ser também imortal”. Lindo! Magnífico!

De tão horrorosamente frágil, a vida é, simultaneamente, fugaz e eterna. O tempo não cessa de desintegrá-la da mesma maneira que a constrói. A cada renascimento morremos, para cada ontem pétreo, um amanhã diáfano. Volto a Borges: “O tempo, se podemos intuir essa identidade, é uma ilusão: a indiferenciação e a inseparabilidade de um momento de seu aparente ontem e de outro de seu aparente hoje bastam para desintegrá-lo”.

No tempo, há o decorrido. Os rastos que ficaram nas estradas e charcos que percorremos, valem muito. Minha identidade depende de saber-me reconhecer diante do espelho. Caso não conseguisse dizer o nome de quem vejo lá dentro, ou de situar-me na história, perambularia pelo futuro, e para sempre na eternidade, acreditando ser o que nunca fui. Minha memória, só ela, me livra da loucura. Não me iludo com a possibilidade de amar Josefina ou de um triunfar em Waterloo por recordar-me dos areais morenos da pobre Gentilândia cearense, onde me criei. Sim, verdade, o passado jaz insepulto. Ele se recusa desaparecer. Assim, há um outro eu que me espreita coberto de poeira; ele me ronda, persegue, alenta, premia e pune. Sei que piso mais forte com a canhota; que exalo um cheiro que impregna o guarda-roupa; que falo com um timbre impossível de imitar; contudo, não passo de um ponto efêmero na retina das pessoas. Tornei-me um esboço mal acabado do que já fui.

Também caminho para a eternidade, onde vive o Mistério Absoluto. Viajo para um porvir insubstancial, composto da não-matéria, onde tudo é penetrável, tudo espírito. Viverei na dimensão em que luz e trevas se confundem, o silêncio do Absoluto ressoa gloriosamente pelos cantos remotos de um universo parelelo ao cosmo. Fragmento-me à medida que o rio me navega, mas não me extinguirei, desaguarei na foz do Grande Oceano e conhecerei o imarcescível, tocarei o intangível.

A esfinge Tebana perguntou a Édipo qual era o animal que tem quatro pés ao amanhecer, dois ao meio-dia e três à tarde. A resposta, tão óbvia, ficara sem resposta por séculos até que o herói respondeu: “O homem”. Em um único dia, da manhã à tarde, engatinhamos e precisamos de bengala como terceira perna. Somos semelhança divina e ao mesmo tempo uma cistus ladanifer, florzinha enamorada do vento da alvorada que se despela à tarde. Kronos o deus implacável que, à semelhança dos leões, come seus próprios filhos, continua esfomeado. Nascemos do sêmen divino, enquanto não passamos de um sonho infantil mal lembrado, ou de um pesadelo adulto angustiante. Somos eternidade e pó.

O Nazareno não propôs outro propósito para a vida, senão a própria vida – eu vim para que tenham vida e vida em abundância. A magnífica vocação de transformar oitenta por cento do código genético de uma lesma em gente que chora, ri, abraça, dança e cria, revela-se tão fantasticamente maravilhoso, que não fazê-lo, já é Inferno.

Termino com o pós-escrito de Jorge Luis Borges depois que ele cogitou sobre “A duração do inferno”: “Sonhei que saía de outro – povoado de cataclismos e de tumultos – e que acordava num cômodo irreconhecível. Clareava: uma difusa luz geral definia o pé da cama de ferro, a cadeira estrita, a porta e a janela fechadas, a mesa em branco. Pensei com medo, onde estou?, e compreendi que não sabia. Pensei, quem sou?, e não pude me reconhecer. O medo cresceu em mim. Pensei: Esta vigília desconsolada já é o Inferno, esta vigília sem destino será minha eternidade. Então acordei de verdade: tremendo”.

Soli Deo Gloria.

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