Tributo à vida.
Meu tributo à vida.
(Ricardo Gondim)
Estou vivo, por isso, penduro bandeirolas para alegrar meu dia. Estou vivo, por isso, contrato um poeta para compor um hino. Soberanamente decreto que todo dia, de agora em diante, será feriado. Estou vivo, por isso, organizo o maior de todos os banquetes; e gastarei os próximos 365 dias com a festa do meu aniversário.
O que amo na vida? O imponderável; dançar na beira de abismos; tentar cruzar despenhadeiros em corda bamba; esperar o tiro de canhão na largada da maratona e não saber como vou terminá-la. Adoro desconhecer as notícias que o telefone trará quando se intrometer em meu sono. Como é fascinante sentir um medinho infundado antes de receber os exames do laboratório. Já sinto frio na barriga só de pensar quando este medinho se transformar no Grande Pavor. Creio que lutarei com bravura quando precisar enfrentar a dama da foice que vai tentar me seqüestrar em seu bornal, rumo ao improvável horizonte. Como é bom poder dizer que cada dia é suficiente em seu próprio mal, e não fugir de acordar a cada manhã, mesmo sabendo que poderei renascer das cinzas, como naufragar em meus problemas.
O que amo na vida? Gente. Gosto da diversidade humana, principalmente dos que me rodeiam. A íris dos olhos é mágica. Nela se escondem degradações que se acumularam em milênios de história. Personagens depravados preenchem páginas, capítulos, tomos inteiros, e são seus olhos que mais despertam interesse. Eles conheciam os segredos de Pandora e simpatizaram com a sordidez de Lúcifer. Todos porém, participaram do teatro existencial; não fossem seus porões macabros, não haveria enredo para Shakespeare, Dante, Eça de Queiroz ou Machado de Assis. Para escrever, eu igualmente preciso deles. Mas, as pupilas também são policromáticas e delas emanam réstias da luz divina. Devemos aos bons a viabilização da existência. Como é gostoso ler biografias e poder construir um panteão de princesas e príncipes. Desaprendo a vaidade e murcho meu ego depois de que caminho ao lado de gente como Priscila e Áquila, Policarpo, Francisco de Assis, João Wesley, Adoniran Judson, Mahatma Ghandi, Martin Luther King e Madre Tereza de Calcutá. Estes nunca se contentaram com as cercas altas ou com os apertados quintais onde nasceram. Quando me familiarizo com suas histórias, curvo-me diante de seus legados, e humildemente reconheço que nada sou, nada fiz.
O que amo na vida? A singeleza das crianças que beijam roçando o nariz duas vezes; o altruísmo de quem oferece a casa para uma prostituta de esquina; o empenho do enfermeiro que faz serão gratuito ao lado do moribundo; a resiliência da mulher que lava o marido com Alzheimer; a doçura da filha que empurra a cadeira de rodas de sua mãe enquanto passeiam pelo parque.
O que amo na vida? Sua beleza. Gosto de meditar, enquanto peixes coloridos bailam em câmara lenta pelos ribeiros; de ler, ouvindo o tamborilar preguiçoso da chuva fina; de pensar em Deus naquele momento breve em que a noite engole o sol e desaparece com o dia; de me sentir acorrentado na frente de um Van Gogh; de recitar Vinicius; de fechar os olhos, permitindo que Bach me possua por inteiro. Adoro textos pungentes. Sou melancólico como a bossa nova do Jobim. Sinto-me geneticamente ligado à nostalgia do fado português. Prefiro estradas bucólicas, aos jardins do impressionismo de Monet.
Estou vivo! Ainda hoje brindarei com um cálice de Merlot chileno; lerei Aluisio Azevedo; dormirei abraçado com a mulher de minha mocidade; mas, antes cochicharei para Deus: Obrigado!
Soli Deo Gloria.
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