Saturday, December 16, 2006

Um rio que corre...

Um rio que corre na alma
(Erorci Santana)


XXVI

Por mais que eu me seqüestre, aquele rio me
[ retoma.
E começa a desenhar-se na lembrança
seus contornos imprecisos, rio limpo, atravessando
a alma sem escoriações, sem danos, embora
maculada para sempre a sua líquida história,
evocação inscrita agora, nessa idade sazonada
e madura. Traz ao poema os primeiros signos
[ do mal.
Primeiro surgem os palustres afogados,
continentais criaturas, depois os assassinados,
cujos inquéritos policiais não decifraram
a condição de peixes compulsórios, os que
tomaram o rio de empréstimo e têm nele
a morada derradeira. Obriga-os ao fundo
um colar de pérolas vulcânicas, utilitárias
da construção civil de grutas.

(...)

Todo rio é da infância e principia com águas
de pouco caso e vai ganhando lenda
e autoridade a cada braça percorrida
para consumo próprio e assombração de inimigos.
E vai morrer, melhor, somar-se ao mar,
cumprindo o seu destino, feito os kamikazes,
os poemas, os meninos. Veste-se
de ira quando violada sua integridade,
ao jugo de substâncias estranhas submetido.
Deve vingar-se semeando a morte se preciso,
pestilências de calibre, delegar armas letais
aos esquadrões de sua guarda para dizimar
aqueles que cometem lesa-majestade contra ele.
Rio que se preze não deve dar testemunho
de pusilanimidade, deve disfarçar seus tristes tons,
creditar à pujança toda venenosa escuma.
E mesmo que os discípulos chorem lágrimas veladas,
esse Mestre deve transitar por entre eles
de cabeça erguida. Um rio assim antepara
os aguilhões da mágoa. Quem obtém um rio assim
não anda mais sozinho. Rio desse naipe,
mesmo turvo como sói, rio deve, até que banhem
o coração de toda humanidade as suas águas.

O Amor.

O Amor
(Nuno Júdice - De Cartografia de Emoções - 2001)

Deus — talvez esteja aqui, neste
pedaço de mim e de ti, ou naquilo que,
de ti, em mim ficou. Está nos teus
lábios, na tua voz, nos teus olhos,
e talvez ande por entre os teus cabelos,
ou nesses fios abstractos que desfolho,
com os dedos da memória, quando os
evoco.

Existe: é o que sei quando
me lembro de ti. Uma relação pode durar
o que se quiser; será, no entanto, essa
impressão divina que faz a sua permanência? Ou
impõe-se devagar, como as coisas a que o
tempo nos habitua, sem se dar por isso, com
a pressão subtil da vida?

Um deus não precisa do tempo para
existir: nós, sim. E o tempo corre por entre
estas ausências, mete-se no próprio
instante em que estamos juntos, foge
por entre as palavras que trocamos, eu
e tu, para que um e outro as levemos
connosco, e com elas o que somos,
a ânsia efémera dos corpos, o
mais fundo desejo das almas.

Aqui, um deus não vive sozinho,
quando o amor nos junta. Desce dos confins
da eternidade, abandona o mais remoto dos
infinitos, e senta-se aos pés da cama, como
um cão, ouvindo a música da noite. Um
deus só existe enquanto o dia não chega; por
isso adiamos a madrugada, para que não
nos abandone, como se um deus
não pudesse existir para lá do amor, ou
o amor não se pudesse fazer sem um deus.