Sunday, September 03, 2006

Who am I ?

Sou uma irregularidade.
(Ricardo Gondim)

Vez por outra leio algo que me deixa com a sensação de que eu é que deveria ter escrito. Invejo André Comte-Sponville quando afirma: “Sem o resto do universo eu não existiria”. Realmente, para que eu acontecesse, infinitas peças, engrenagens e fatos precisaram se encaixar.

Bastou um tranco no joelho do Dote para seus meniscos estourarem e ele desistir do futebol profissional e querer se aquietar ao lado de sua noivinha. Um homérico porre do vovô Zé Gondim deve ter provocado sentimentos casadoiros na Glícia para que ela aceitasse subir ao altar com tanto açodo. Num dia qualquer, borboletas voaram na África, os ventos quentes do nordeste ficaram mais afrodisíacos e o quarto deles se revestiu de uma aura dionisíaca. Sem pílulas anticoncepcionais, e sem muito controle sobre seus apetites sexuais, aconteci. Não devo ter sido planejado (nunca tive coragem de perguntar isso a eles – não é bom saber que vim ao mundo por causa de um vacilo).

Assim, percebo que minha vida é rara. Aliás, sou uma irregularidade do universo. Mereço estudos e pesquisas como uma anomalia da natureza. Ninguém me explicaria. Nem eu mesmo! Quanto mais procuro entender essa coisa estranhíssima chamada eu, mais esperneio por respostas. Por que tantos fatores convergiram para existir um bicho esquisito assim?

Continuarei varrendo poeiras com um pincel de arqueólogo; tenho que me interpretar. Preciso saber porque fujo de baratas, não tolero a textura de banana na boca e gosto de camarão. Será que entenderei porque só quero me enxugar com toalhas bem secas e ásperas, de ler as crônicas dos jornais, de meditar nos epitáfios dos cemitérios e de emocionar-me com poesia? Que bicho mais anormal poderia deleitar-se com Machado de Assis, Vinicius de Moraes e, ao mesmo tempo, pregar sermões semanais se inspirando em Jesus Cristo?

Vou fazer um curso de escafandrista para mergulhar no meu interior; tenho que explorar essas regiões abissais que se formaram dentro de mim. Preciso descobrir de onde vem minha timidez; nos encontros pessoais sou introvertido, porém, desenvolto em grandes auditórios.

Lerei Proust para descobrir porque não gosto de lembrar as melhores experiências do passado; tenho que averiguar a causa de temer tanto a dor da saudade. Deve haver uma razão porque fujo das boas memórias. Percebo que elas me torturam. Por algum motivo não consigo aceitar que a vida passe e me obrigue a sepultar meus amigos. Deixo que os bons momentos que vivi se percam no fundo desse mar chamado esquecimento. Reluto com a dor de nunca mais poder voltar aos inúmeros lugares que tanto admirei e tento não revisitá-los quando eles voltam à minha recordação.

Vou marcar um encontro com Freud para pedir que me explique porque sonho com aviões que nunca chegam ao seu destino. Não aceitarei seus possíveis argumentos de que minha amamentação foi interrompida. Acredito que os seios de minha mãe me nutriram e acalentaram o suficiente.

Aportei em um mundo que já rodava feito pião e percebo que não conseguirei segurá-lo. Cheguei e poucos souberam; direi meu adeus final a um punhado. Partirei qualquer dia e tudo continuará igual: nem sempre os fortes ganharão a peleja e nem sempre os sábios serão ouvidos.

Porém, continuo irrequieto com minhas inquietações. Perturbo-me com a miséria humana, mas não deixo de dormir todas as noites com minha indiferença burguesa. Ao mesmo tempo em que sofro, me acovardo; enquanto protesto contra a destruição do planeta, usufruo a boa vida. Sou uma ambigüidade irritante.

Vou caminhando contra o vento, sem lenço, sem documento e sem solução. Resta-me somente agradecer a Deus por deixar que eu existisse.

Apesar de tudo, sou um milagre. Só saber disso já dá vontade de pular de alegria.

Soli Deo Gloria.

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